sábado, dezembro 26, 2015

Psicologia - Frase da semana, 27DEZ15: BRINCOS PERIGOSOS!

Psicologia - Frase da semana, 27DEZ15: BRINCOS PERIGOSOS!



Rapariga com brinco de pérola, de Johannes Vermeer
«Vai a sair quando ouve um deles murmurar para o outro: «Achas que lhe vai doer?» E o ar de ambos é, de repente, tão infeliz e desamparado, que ela volta atrás e diz: «Não dói nada, estejam descansados!»
E quando o homem lhe sorri desajeitadamente, só por vergonha é que ela não diz à amiga que o achou ligeiramente parecido com o filho mais velho.
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OS BRINCOS
Tinha deixado passar o Natal para tudo estar mais calmo. No último dia do ano, quando muito estariam cheias as lojas de alimentação. A amiga ainda torceu o nariz, que deixasse para depois, que os brincos não fugiam, estivesse ela descansada. Mas ela insistiu: «Não quero entrar no ano novo sem os brincos, pronto!»
Quando chegaram à loja respiraram aliviadas: tirando um casal de noivos a escolher alianças, mais ninguém lá se encontrava.
O empregado logo as atendeu e, de repente, o balcão da ourivesaria brilhava de uma ponta à outra: de um lado, estendiam-se alianças grossas, fininhas, largas, estreitas; do outro, estendiam-se brincos de pérolas, brilhantes, pedras verdes e azuis – embora ela tivesse logo explicado que queria aqueles que estavam na montra, uma pérola e mais nada, iguaizinhos aos que o marido lhe oferecera no dia do nascimento do filho mais velho e que ela deixara roubar numa viagem. Mas isto ela não diz ao empregado, claro.
Foi então que os dois homens entraram. De rompante. Enormes, pele muito escura, barba de muitos dias, o rosto de ambos totalmente encobertos por cachecóis sem cor.
Num segundo os empregados fazem desaparecer brincos e alianças, a noiva fica mais branca do que a parede da loja. A amiga murmura-lhe qualquer coisa como «eu bem não queria vir», e ela começa a sentir a cabeça a andar à roda, virão roubar o quê? trarão pistola?,o que se sentirá quando se leva um tiro?
Os homens avançam rapidamente até ao balcão, cara de poucos amigos, mãos nos bolsos de sobretudos meio esfiapados. «É agora», pensa ela, «daqui não escapo viva», pensa a noiva. «Se ao menos eu soubesse onde está o alarme», pensa o empregado, que é novo e ainda não conhece os cantos à casa.
É então que se ouve um barulho estranho, entre o miar de gato e o piar de ave aflita: meio metro de gente, mal se equilibrando de pé, olhos muito negros e redondos, agarrada ferozmente às pernas do maior dos dois homens que, sem mais rodeios, diz para o empregado, apontando-a: «Fure-lhe as orelhas.»
Começaram todos a sentir-se mais aliviados. Regressam as alianças, regressam os brincos, só a miúda não pára de gemer. «Fure-lhe as orelhas, senhor», insiste o homem, «não quero que ela entre no ano novo sem brincos.»
A miúda desaparece pela mão do empregado, enquanto os dois homens esperam. Enormes, mãos nos bolsos, ar de poucos amigos.
Ela escolhe os brincos, de repente está cheia de pressa de se ir embora, o empregado embrulha, ela paga.
Vai a sair quando ouve um deles murmurar para o outro: «Achas que lhe vai doer?» E o ar de ambos é, de repente, tão infeliz e desamparado, que ela volta atrás e diz: «Não dói nada, estejam descansados!»
E quando o homem lhe sorri desajeitadamente, só por vergonha é que ela não diz à amiga que o achou ligeiramente parecido com o filho mais velho.
(Alice Vieira, “Bica Escaldada”, Casa das Letras, 3.ª ed., 2009, p. 177-8.)

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