sábado, dezembro 19, 2015

Psicologia - Frase da semana, 20DEZ15: VOTOS DE SANTO NATAL. OBRIGADO, ALICE VIEIRA!

Psicologia - Frase da semana, 20DEZ15: VOTOS DE SANTO NATAL. OBRIGADO, ALICE VIEIRA!


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Quem é o Pai Natal, afinal?
a) É o homem, feliz, que olha à janela.
b) É o taxista, bem-disposto, que olha o homem que está à janela.
c) É o velhote a quem dói muito a perna.
d) É o industrial que ficou com o carro avariado.
e) É o Chico Buarque, o autor de "A Banda".

«Porque, já lá dizia a minha avó, aquilo que terá de vir, ao colo nos irá cair...»
UM HOMEM À JANELA
                Se calhar por porque amanhã é Natal e as pessoas andam imbuídas do espírito da época. Se calhar foi porque eu tenho sorte, e calham-me sempre taxistas simpáticos na cidade do Porto. Se calhar foi porque sim – que, já lá dizia o poeta Augusto Gil, é sempre a mais forte das razões.
                A verdade é que eu ia carregada de embrulhos, chovia que Deus a dava, a hora de ponta ameaçava (se é que ainda há hora de ponta…), e o táxi que me levava, tal como os outros carros todos, andava pelas ruas num pára-arranca de fazer aflição. É nesta altura que normalmente as pessoas perdem a paciência, desatam a insultar o da frente que ó tempo que já podia ter passado, mas não, saiu-te a carta na Farinha Amparo, ó animal, ou então insultam o governo, isto é tudo a mesma cambada, prometem, prometem, mas não fazem nada, eu cá se mandasse punha aqueles gajos todos que estão lá no Parlamento na rica vida, sim que aquilo ninguém faz nada, punha-os todos aqui a trabalhar, para eles verem o que é bom para a tosse.
                Mas, para meu grande espanto, começo a ouvir, primeiro num quase murmúrio, depois ligeiramente mais alto, uma voz extremamente afinada a cantar «eu estava à toa na vida/ o meu amor me chamou/ para ver a banda passar/ cantando coisas de amor…» E a seguir uma risada bem-disposta. Olhou para mim pelo retrovisor e apontou para um prédio: «A senhora já viu ali aquele homem à janela? Há que tempos eu não via um homem à janela! Por isso é que até me deu vontade de cantar isto. Ali está ele, sem pressas, a ver a banda passar. Ainda por cima com esta chuva. Aquilo até é capaz de lhe fazer mal. Mas que está feliz, lá isso está. Um homem à janela!»
                Sim, porque, continuava ele, ninguém hoje tem tempo para nada, anda tudo em correrias e para quê?, entram-me aqui no carro e pensam que ele tem asas, e às vezes até me insultam como se tivesse alguma culpa. O que vale é que eu já tenho muitos anos disto e na maior parte dos casos, olhe, ponho-me ali como o homem da janela, ouço tudo e limito-me a ver a banda passar… Porque, já lá dizia a minha avó, aquilo que terá de vir, ao colo nos irá cair. Aqui há bastante tempo, continuava ele, apanhei um passageiro em Campanhã, o velhote, coitadito, mancava de uma perna, mal podia com ele, e diz-me assim, desculpe lá, amigo, esta perna dói-me muito, mas eu cheguei agora e precisava de ir ao restaurante Aleixo, está lá gente à minha espera, eu sei que isso é já ali ao cimo da rua, mas esta perna dá cabo de mim, eu depois dou-lhe mais qualquer coisa. É claro que levei o velhote, mas a pensar comigo, começas bem o dia, ó Joaquim… Então não é que, depois de ajudar o velho a entrar no restaurante, não me sai de lá de dentro um homem que me pergunta se eu estou livre para o levar a Ponte de Lima?! A senhora está a ver onde fica Ponte de Lima, não está? O carro dele parece que se tinha avariado, assim uma coisa dessas, sei é que lá fomos os dois, ele era um industrial aqui para o Norte e, conversa puxa conversa, arranjou-me emprego para o meu filho! Está a ver como são as coisas… O que tem de ser tem muita força, não é? Mesmo que a gente esteja à janela, ali como aquele, o que tiver de vir, ao colo nos há-de cair.»
                Quando desci do táxi já ele voltava a cantarolar, «eu estava à toa na vida…», feliz por haver um homem que, no fim de uma tarde de chuva, ainda tinha tempo para estar tranquilamente à janela, a olhar os carros, as pessoas, o mundo.
(Alice Vieira, “Bica Escaldada”, Casa das Letras, 3.ª ed., 2009, p. 133-4.)

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