Amadeu Ferreira (o que olha de frente), com António Tiza, em Bragança (1970) |
1972. Amadeu Ferreira aproxima-se do final da formação seminarista, iniciada em Vinhais e continuada em Bragança, um caminho de onze anos iniciado com a sensação de uma ruptura brutal com a infância.
«Ainda não tinha ido para o seminário e já tinha saudades de ficar em Sendim, de andar por ali com os miúdos da minha idade, na brincadeira, de andar pelos campos, de ir com os meus pais, porque eu tinha uma ligação muito forte à terra, ao campo. Conhecia aquele mundo, aquele era o meu mundo. Tinha uma ligação muito forte com os meus irmãos, quer com o meu irmão mais velho, o Abel, que na altura já tinha 14 anos e trabalhava no campo, como um homem, quer com o meu irmão Manuel, três anos e mei mais novo. Os três andávamos sempre juntos. O Carlos tinha acabado de nascer nesse ano, em Fevereiro." (in O Fio das Lembranças, Biografia de Amadeu Ferreira, de Teresa Martins Marques, Âncora Editora, 2015, p. 124)Mas - o miúdo Amadeu sabe-o claramente - o seminário era a grande (única!) oportunidade de formação escolar naquele mundo tão isolado e tão pobre.
Em 1972, com 22 anos, a mente de Amadeu Ferreira processa em pensamentos de grande turbulência tudo o que vive, observa e sente. Como cantou o poeta, ele via, ouvia e lia, não podia ignorar. A rebeldia contra o conservadorismo do pensamento seminarista põe-no cada vez mais perto da expulsão do seminário - ele, o melhor aluno do seminário de Bragança. Lê obsessivamente; e escreve, escreve, escreve. Lê, interpreta e reeinterpreta.
Assim fez com a ode de Ricardo Reis
Assim fez, também notavelmente, com Shakespeare.Para ser grande, sê inteiro: nadaTeu exagera ou exclui.Sê todo em cada coisa. Põe quanto ésNo mínimo que fazes.Assim em cada lago a lua todaBrilha, porque alta vive.
«De facto nunca, desde então, aceitei o dito de Shakespeare "Ser ou não ser eis a questão", substituindo-o por "Ser e não ser eis a questão". Na mesma linha, desde cedo rejeitei o chamado princípio da não contradição, aceitando que ser e não ser, ao mesmo tempo, pode ser.» (in O Fio das Lembranças, Biografia de Amadeu Ferreira, de Teresa Martins Marques, Âncora Editora, 2015, p. 254)Com notável argúcia, rompe com a tradicional dicotomia filosófica reinante, mergulha, entre outros, nos escritos dos autores fenomenologistas, e reescreve Shakespeare como certamente Jacques Lacan bem gostaria de ter feito: qual ovo de Colombo, transforma o disjuntivo dilema [ou] do ser na copulativa [e] integralidade humana - a única que verdadeiramente faz sentido - somo o que somos e o seu contrário. É nessa estrutural inerência humana que nos fazemos na dimensão individual, social, política, criativa; submissa ou rebelde; conservadora ou desafiando rupturas; solidariamente ou egoisticamente. Não há outro caminho - apenas o da opção pessoal, não o do destino ou do fatalismo.
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