domingo, janeiro 19, 2014

Psicologia - Frase da semana, 20jan14, "Entre quem é!"

Psicologia - Frase da semana, 20jan14, Estar atento e disponível para o acolhimento.


"O mundo só pode melhorar se a atenção é dirigida, em primeiro lugar, à pessoa; (...) [e] caso se passe de uma cultura do descartável para uma cultura do encontro e do acolhimento.
MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO 
PARA O DIA MUNDIAL DO MIGRANTE E DO REFUGIADO (2014), 



Foi em Macau que, antes de qualquer outro lugar,
experimentei o sabor gostoso do abraço.
Nas aulas de Psicologia, na mesma semana, abordámos o tema da atenção (enquanto processo cognitivo) e ilustrámos o tema da aprendizagem (outro processo cognitivo) a partir do testemunho de um jogador de futebol, que disse que a primeira coisa que aprendeu com o exemplo de outro jogador de futebol, mais velho, "a bem receber" (trata-se, assim, de uma forma de aprendizagem social, vicariante) (1).
O Papa Francisco é homem para se rir da provocação que agora lhe podemos fazer: será que o Papa Francisco veio a Portugal, ao Estádio da Luz, ver como Eusébio fazia e agora anda a imitá-lo?... Ou será que Eusébio fez - naturalmente ou por opção de vida - o que está ao alcance de qualquer um, sem ser necessário jogar futebol na Luz ou viver no espaço da Cidade do Vaticano com um título de alto chefe religioso?
O que, no fundo, pretendo deixar no pensamento dos meus alunos será, antes de mais, que, seja por via do credo religioso de cada um (seja qual seja o credo, e seja qual seja o seu chefe religioso), seja por via assumidamente laica ( e jogue-se ou não futebol), o importante é mesmo bem receber, bem acolher
A celebração  do Dia Mundial do Migrante e Refugiado foi criada pelo papa Pio X, em 1914. Hoje acontece precisamente a centésima edição. Estranhamente para mim, o calendário "Celebração do Tempo" - magnífico documento! - não faz alusão a esta celebração religiosa... Tenho aqui comigo as edições de 2012, 2013 e 2014 e, de facto, nenhuma alusão.
O espírito de bem receber e de bem acolher tem outras raízes, outras fontes, outras vivências culturais.
Por exemplo, quando li, ou melhor, quando voltei à Odisseia de Homero, uma das coisas que mais me tocou foi o repetido acontecimento da receção do estrangeiro, do desconhecido, que, por exemplo, no canto VIII, da editora Cotovia (pp. 120-143), se expressa desta notável maneira:
"(...) Todos ficaram em silêncio, ao verem um homem estranho, e maravilharam-se ao olhá-lo. (...) [Ulisses:] «Dai-me transporte, para que chegue depressa à pátria, pois já há muito que sofro desgraças longe da minha família.» Com boa intenção [Arete, esposa de Alcínoo] assim se dirigiu aos outros: «Alcínoo, não é esta a melhor maneira (nem sequer fica bem) de se receber um estrangeiro, assim no chão, no meio das cinzas.» (...) Uma serva trouxe um jarro com água para as mãos, um belo jarro de ouro; e água verteu numa bacia de prata. E junto dele colocou uma mesa polida. A venerável governanta veio trazer-lhe o pão, assim como iguraias abundantes de tudo quanto havia. (...) [Passou o tempo...] De todos os outros [Ulisses] conseguiu ocultar as lágrimas; só Alcínoo se apercebeu e reparou no que sucedia, pois estava sentado perto dele e ouviu-o suspirar. Logo declarou aos Feaces que amam os remos: «(...) Desde que demos início ao banquete e o divino aedo começou a cantar, desde então não parou de chorar e de se lamentar o estrangeiro. A dor abateu-se sobre ele. Que o canto cesse, para que todos nos alegremos, anfitriões e hóspede, pois é muito melhor assim. Foi em honra do estrangeiro que preparámos tudo isto: o transporte e os presentes que lhe damos com amizade. Um estrangeiro suplicante é como um irmão para um homem que atinja o mínimo do bom senso. Assim, pela tua parte não escondas com intenção calculista aquilo que te quero perguntar. Ficar-te-ia melhor falares. Diz-me o nome pelo qual te tratam tua mãe e teu pai, assim como todos os que habitam perto da tua cidade. Pois entre os homens não há ninguém que não tenha um nome, seja ele de condição vil ou nobre, uma vez que tenha nascido: mas os pais dão sempre um nome aos filhos, quando nascem. E diz-me qual é a tua terra, qual é a tua cidade (...) Mas há uma coisa: ouvi-a da boca de meu pai, Nausítoo. Afirmou que Posídon se encolerizava contra nós, porque damos a todos transporte seguro. Disse que viria o dia em que uma nau bem construída dos Feaces, ao regressar de um transporte sobre o mar brumoso, seria atingida por Posídon, e ocultada atrás de uma grande montanha. Assim falou o ancião. Estas coisas o deus cumprirá, ou deixará por cumprir, conforme lhe aprouver ao coração. (...)»
Extraordinário, sem dúvida, este texto! Acolhe-se o estrangeiro de braços abertos, só muito depois se lhe pede o nome. Quem tem poder, quem manda, pode não aprovar e lançar castigos. Só que cada um de nós pode fazer opções. O papa Francisco, milhares de anos depois de Homero, lança, antes de mais, aos crentes que o seguem, este repto: "é necessário passar de uma atitude de defesa e de medo, de desinteresse ou de marginalização - que, no final, corresponde precisamente à “cultura do descartável” – para uma atitude que tem por base a “cultura do encontro”.
Miguel Torga era muito apaixonado pela Cultura Clássica, grega e romana. Conheceria, certamente, as aventuras e os enredos da epopeica Odisseia de Ulisses. Já não a conheceriam os ancestrais transmontanos, os que lhe trouxeram o húmus do homem que ele foi, no Reino Maravilhoso em que nasceu a onde sempre e sempre regressou. Em 1941, num congresso sobre Trás-os-Montes, começou assim:
Vou falar-lhes dum Reino Maravilhoso. Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade, e o coração, depois, não hesite. (...)  fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos. E quem namora ninhos cá de baixo, se realmente é rapaz e não tem medo das alturas, depois de trepar e atingir a crista do sonho, contempla a própria bem-aventurança. (...) Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena: - Entre! A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso. (...) A terra é a própria generosidade ao natural. Como num paraíso, basta estender a mão. Bata-se a uma porta, rica ou pobre, e sempre a mesma voz confiada nos responde: - Entre quem é! Sem ninguém perguntar mais nada, sem ninguém vir à janela espreitar, escancara-se a intimidade duma família inteira. O que é preciso agora é merecer a magnificência da dádiva. Nos códigos e no catecismo o pecado de orgulho é dos piores. Talvez que os códigos e o catecismo tenham razão. Resta saber se haverá coisa mais bela nesta vida do que o puro dom de se olhar um estranho como se ele fosse um irmão bem-vindo, embora o preço da desilusão seja às vezes uma facada. Dentro ou fora do seu dólmen (maneira que eu tenho de chamar aos buracos onde vive a maioria) estes homens não têm medo senão da pequenez. Medo de ficarem aquém do estalão por onde, desde que o mundo é mundo, se mede à hora da morte o tamanho de uma criatura. Acossados pela necessidade e pelo amor da aventura emigram. Metem toda a quimera numa saca de retalhos, e lá vão eles. Os que ficam, cavam a vida inteira. E, quando se cansam, deitam-se no caixão com a serenidade de quem chega honradamente ao fim dum longo e trabalhoso dia. O nome de Trasmontano, que quer dizer filho de Trás-os-Montes, pois assim se chama o Reino Maravilhoso de que vos falei.
Impressionante! As mesmas referências ao valor do homem, ao valor da confiança, ao tolhimento do medo; o risco pessoal que resulta do lobo bom e do lobo mau que existe em cada um de nós e de que fala o nativo ancião da América do Norte - na verdade, todos, mas todos mesmo, podemos decidir alimentar um ou o outro. Para muitos; para os transmontanos de Miguel Torga, para os Ulisses de Homero, para os Eusébios do futebol, para os chefes religiosos como Francisco, o risco do encontro espontâneo e sincero com o outro vale bem a pena!

(1) "1. BEM RECEBER.  Quando cheguei ao Benfica, em 1992, vindo do Boavista, já o conhecia, da seleção, e estabelecemos logo uma boa relação. Senti-me sempre protegido por ele. Ele gostava muito de mim como jogador e acolheu-me muito bem, como aliás fazia com toda a gente que chegava ao Benfica. (...)" (João Vieira Pinto, "As 8 coisas que aprendi com Eusébio", Sábado, edição n.º 506, de 8 de janeiro de 2014, pág. 61)

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