segunda-feira, outubro 21, 2013

Saborosa memória do meu mestre, o dr. João dos Santos

"EU, NO SEU LUGAR, NÃO TERIA FEITO ASSIM"
pretensiosa (1) homenagem ao Dr. João dos Santos
Tenho o privilégio de ter muitas – todas muito saborosas – memórias de contacto pessoal direto com o Dr. João dos Santos, o meu grande mestre no ofício de aprendiz de feiticeiro. Melhor do que ninguém, foi ele quem, sempre me apoiando no esforço de tentar ser bom nesse tal ofício de aprendiz de feiticeiro, me soube fazer escutar e tomar consciência do aviso de que, nestas artes em que andamos a tentar ajudar os outros, “o que verdadeiramente importa é a Política e a Educação, tudo o mais vem depois disso.” Para termos a justa medida das coisas, nomeadamente do nosso poder de terapeutas.
A memória que aqui trago talvez seja especialmente única e, no seu aparente bom humor, realça a grandeza da humildade do meu mestre João dos Santos. É esse o meu desejo.
O primeiro contacto que tive com o Dr. João dos Santos foi na Clínica Infantil do Hospital Júlio de Matos, andava eu no 4.º ano do Curso de Psicologia, ramo de Psicologia Clínica, da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação de Lisboa, no ano de 1979 (Penso que não estou a errar na data…).
O Dr. João dos Santos fez, perante a turma de que eu fazia parte, a consulta a uma menina de lindos caracóis, que me trazia à ideia, na construção mental mais bonita que eu conseguia criar dessa personagem da ficção infantil do meu tempo de criança, a Zé das Aventuras dos 5 da escritora Enid Blyton.
No final da consulta, o Dr. João dos Santos, como seria seu timbre, já depois da criança se ter ido embora, deu aos alunos a palavra para perguntas e comentários.
Com a ingenuidade feita de boa fé e do entusiasmo cada vez mais afirmado pela “feitiçaria” em que me envolvia, levantei o braço e esperei. O Dr. João dos Santos deu-me a palavra, logo de seguida. Repito, de boa fé e cheio de entusiasmo, disse ao Dr. João dos Santos que tinha gostado muito da consulta mas que, se tivesse estado no lugar dele, eu não teria feito assim como ele tinha feito.
Dei-me conta que, depois de dizer isto, houve um silêncio quase gélido à minha volta. Apenas o Dr. João dos Santos sorriu e boamente soltou um breve, mas curioso – sinceramente curioso, pareceu-me – “Ai,  sim?!…”.  Perguntou-me o nome, como depois verifiquei que sempre fazia aos seus alunos, até lhos conhecer. Depois pediu-me que lhe dissesse o que pensava. Eu disse, e a seguir o Dr. João dos Santos comentou o que de mim ouviu, agradecendo o meu contributo e sem me fazer qualquer crítica, apenas acentuando os aspectos que lhe pareciam relevantes em termos da minha aprendizagem e da aprendizagem dos meus colegas.
A aula acabou por chegar ao fim. Assim que saímos da aula-consulta, alguns colegas meus apressaram-se a vir ter comigo, quase me encostando à parede, perguntando-me se eu tinha noção do que tinha feito, ou como é que eu tinha tido coragem de fazer o que tinha feito. Estranhei tamanha – e desproporcionada, no meu entender – reacção dos colegas e “defendi-me” dizendo que me sentira muito bem, que o professor nos pusera à vontade e que não tirei a palavra a ninguém; respeitei as regras do jogo e o professor não me fez qualquer censura ou reparo. Alguns insistiram em perguntar se eu sabia quem era o Dr. João dos Santos; eu respondia que não e insistia que tinha gostado muito da aula.
“A coisa passou”. Mais ou menos um ano depois, apresentei-me no gabinete da senhora directora do Dispensário Central do Centro de Saúde Mental Infantil, nas Amoreiras, a candidatar-me a um estágio de pré-graduação. Fui recebido pela muito querida e saudosa doutora Teresa Ferreira, de quem, por muita bondade sua, também, depois, me tornei amigo.
Fiz a minha apresentação pessoal como a Dr.ª Teresa Ferreira me pediu para fazer. A certa altura, num repente de espanto, a Dr.ª Teresa Ferreira interrompeu-me e exclamou: “Então és tu!…”. Eu, surpreendido com a reacção da minha futura responsável oficial de estágio, balbuciei: “Sou eu?… Mas quem sou eu, Dr.ª Teresa?…” Bem, noutro contexto, o que estas minhas interrogações, feitas ali à frente de uma psicanalista, não diriam sobre o estado da minha saúde mental!…
Foi então que, com muita doçura, a Dr.ª Teresa Ferreira me disse que já conhecia a história daquela aula-consulta. O Dr. João dos Santos já falara dela na Sociedade Portuguesa de Psicanálise (ou, pelo menos, na conversa num grupo de membros da Sociedade de Psicanálise). Ele, assegurou-me a Dr.ª Teresa Ferreira, guardava uma recordação agradável dessa aula-consulta e tinha-lhes contado mais ou menos isto:
“Imaginem o que me aconteceu… dei uma consulta no Júlio de Matos e no fim quando pedi aos alunos que dissessem qualquer coisa, houve um que pediu para falar e disse-me que não concordava comigo e que teria feito de maneira diferente… depois explicou o seu ponto de visa… Sabem, soube-me bem ouvir alguém dizer que não concordava comigo… estou habituado a falar, a dizer coisas e toda a gente concorda sempre, soube-me bem ouvir alguém dizer que não concordava comigo… um rapazinho que ainda anda a ver se aprende como estas coisas se fazem… E sabem que mais? Ele tinha razão no que disse, tenho de o reconhecer…”
A Dr.ª Teresa Ferreira olhava para mim, parecia que queria mesmo perceber quem era o candidato a feiticeiro que tinha pela frente. Eu, pelo meu lado, saboreava o relato, olhando-a nos olhos, com alegre sentimento e ainda maior – mas escondida – vaidade!… O ano transcorrido desde a aula-consulta até àquele momento tinha-me trazido a noção de quem era e do que era o Dr. João dos Santos. Muito fui aprendendo com ele ao longo do ano; e até já tinha tido o privilégio de me tornar seu amigo. Amigo que ele várias vezes convidou para a sua casa de Sintra. “Senta-te, Fernando, aqui, ao pé de mim, nos cadeirões dos sábios, vamos conversar…”
Naquela aula, em que reencontrei a Zé maria-rapaz das Aventuras dos 5, o Dr. João dos Santos foi, sem dúvida nenhuma, aquela mãe suficientemente boa de Winnicott, que olhou a ousadia, o desplante do petiz, e o conduziu magicamente no seu processo de autonomia e crescimento, apoiando-lhe a confiança pessoal, o prazer de pensar e o prazer de fazer.
Com o diploma de aprendiz de feiticeiro nas mãos, tornei-me, por opção pessoal, professor do ensino secundário. Tenho constantemente presente na minha acção a tal ideia, que tomei também para mim, de que o que verdadeiramente importa é a Política e a Educação. Procuro estar atento aos alunos, acreditando sempre que eles possam dizer-nos coisas que nos enriqueçam, coisas que sejam novas e coisas que nos façam ser melhores. E todos os dias tento ser humilde, humilde, humilde; sobretudo quando, na minha condição de professor, ou clínico, ou noutro estatuto social qualquer em que assuma posição de poder ou convencional ascendência, me relaciono com quem esteja a fazer o seu crescimento pessoal (os alunos, em geral), ou confrontado com o (presumido) poder dos especialistas (os pais, antes dos demais).
Entre iguais, mantenho o à vontade e a presunção gaiata que manifestei perante o Dr. João dos Santos, “pecha” juvenil que, em geral, os meus interlocutores aceitam; mas foi ele quem, melhor que todos os outros (provavelmente porque aconteceu no momento mais crítico do meu desenvolvimento académico), e até hoje, soube aceitar boamente, tolerantemente, a ousadia do petiz e, desse modo, lhe deu a notável oportunidade de ser cada vez melhor – melhor pessoa, melhor psicólogo, melhor educador, melhor cidadão.
Um grande abraço de admiração e gratidão, Dr. João dos Santos! É na minha vida, todos os dias, uma força aconchegante e que me mantém a caminho da Utopia.
Fernando Pinto, em 17 de junho de 2013
(este texto foi publicado hoje, dia 21 de outubro de 2013, em primeira mão, no 'site' João dos Santos no século XXI (http://joaodossantos.net/testemunhos/)
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(1) Pretensiosa porque por quem me tomarei eu para pensar que me posso alcandorar ao direito de assim falar do dr. João dos Santos.

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