terça-feira, fevereiro 10, 2009

"São precisos professores que gostem de ler"

Fui buscar esta entrevista à ediçaõ on line do Público de ontem. Penso que é um texto importante, para ler, pensar e discutir. (09.02.2009, Graça Barbosa Ribeiro)

O coordenador dos novos programas de Português faz uma avaliação severa das qualidades profissionais dos docentes

Reitor da Universidade Aberta e especialista em Estudos Portugueses, Carlos Reis foi convidado pelo actual Governo para coordenar a equipa que elaborou os novos programas de Português dos 1.º, 2.º e 3.º ciclos do ensino básico, actualmente em consulta pública. Admite que eles não vão revolucionar a relação dos portugueses com a língua, mas não esconde que, na sua perspectiva, isso seria desejável. A maior parte dos professores que nos últimos 20 a 30 anos saíram dos politécnicos, diz, foi formada com base numa concepção "muito desenvolta do que é falar e escrever em português".

As crianças a que se destinam os novos programas são muito diferentes daquelas às quais se dirigiam os que estão em vigor, de 1991? 
Muito. Em 1991 as crianças não mandavam mensagens de telemóvel e agora mandam, não escreviam em "salas" de conversação na Internet e agora escrevem - e isso faz uma diferença brutal. Os protocolos de escrita mudaram completamente, houve uma certa dessacralização da linguagem. As palavras não se escrevem por inteiro, a sintaxe desintegrou-se...
Até que ponto isso é negativo?
Em si, não é negativo nem positivo. O problema é que, tanto quanto me parece, há uma geração que incorporou esse tipo de linguagem como normal e não é capaz de destrinçar os usos e os contextos em que a pode usar.
 
Combater essa tendência é uma preocupação nos novos programas de Português?
Sim, há orientações bastante claras quanto a isso. Não faz sentido contrariar o uso daquele tipo de linguagem, mas é necessário estabelecer critérios. Fazer com que os alunos percebam claramente que não podem escrever da mesma maneira quando enviam uma mensagem e quando estão a fazer um exame.
Alguns dos elementos da geração a que se refere já são professores...
Esse é um dos problemas, mas não o único. Não se pode, naturalmente, generalizar, mas há muitos professores - não só, mas principalmente os que saíram dos institutos politécnicos - que foram formados à luz de uma concepção... eu diria... muito desenvolta, muito expedita do que é falar e escrever em português.
 
Refere-se à falta de qualidade da formação de que falou, recentemente, o secretário de Estado da Educação?
Não, essa é outra questão, grave e a exigir actuação imediata [ver caixa]. Quando falo dos politécnicos, refiro-me ao facto de nos últimos 20 a 30 anos se ter dado uma importância excessiva à componente pedagógica pura e dura. Não nego a sua relevância, mas teve um desenvolvimento e um peso que puseram em causa a dimensão científica. Esqueceu-se o óbvio: eu não posso ser um bom professor de Física se não souber Física, não posso ser um bom professor de Português se não tiver um conhecimento aprofundado e sistemático da língua.
Esses professores de que fala são os mesmos que vão implementar os novos programas de Português. Não estamos perante um ciclo vicioso?
Que tem de ser cortado. Para implementarem os novos programas, os professores deverão ser apoiados com acções de formação nas respectivas áreas científicas. E em relação aos alunos o programa é muito claro no combate a uma cultura de facilitismo e de tolerância ao erro, também ela relacionada com determinadas concepções pedagógicas.
Como é que, na prática, isso se combate?
De duas formas. Antes de mais, acabando com a chamada "pedagogia do erro". Aquela coisa de "se o menino erra tem de se valorizar o erro, a expressividade...". Sou completamente contra isso. Um erro é um erro, em Português como em Matemática. Se no discurso corrente, quotidiano, o sujeito não concorda com o predicado, isso é um erro.
E a segunda...
... está profundamente relacionada com o primeira. Os novos programas revalorizam aquilo a que os especialistas chamam o conhecimento explícito da língua e, dentro dele, o domínio da gramática, que durante anos foi, por assim dizer, marginalizada. Não pretendemos martirizar ninguém, mas sim que a língua mantenha alguma coesão. Porque a gramática não é um fim em si mesmo, é um instrumento fundamental para que possamos, justamente, ter a noção do erro.
 
Há uma intenção de ruptura na elaboração dos programas, então?
Não, isso não. Não poderia haver. Os programas - estes ou os de qualquer outra disciplina - não são feitos para um colégio privado. São para funcionar num espaço nacional, têm de ter em conta todos os professores (o que sabem e o que podem aprender) e todos os alunos (os ricos e os pobres, os que têm famílias cultas e os que não têm). Não é possível fazer rupturas, apenas ir mudando alguma coisa.
Há muito que se reclama uma revalorização dos textos literários. Isso acontece com estes novos programas?
Devido ao contexto de que falei, talvez não tanto quanto muitos esperavam. Mas, sim, há a revalorização do seu papel formativo. Actualmente, os poucos textos literários apresentados aos alunos são utilizados como textos ilustrativos de coisas que têm pouco a ver com a literatura. Usar um soneto de Camões para explicar o que é o discurso argumentativo, por exemplo, é matar o soneto de Camões. Ele tem de ser percebido pelos alunos como uma grande peça lírica, que representa e modeliza uma emoção, uma visão do mundo, um sentimento. Mas, mais uma vez, esse não será um objectivo fácil de atingir sem, paralelamente, fazermos os possíveis e os impossíveis para que os professores sejam grandes leitores.
 
E não o são?
Infelizmente, não acho que sejam. Terão excelentes explicações - não têm tempo, o trabalho na escola está muito burocratizado... -, mas isso não resolve o problema. Para termos alunos que gostem de ler são precisos professores que gostem de ler, que entendam a literatura como um domínio de representação cultural com uma grande dignidade e com uma enorme capacidade de nos enriquecer do ponto de vista humano. Claro que isto ultrapassa, em muito, a esfera de actuação de quem prepara programas de Português, e está intimamente relacionado com a actual crise das Humanidades.
 
Essa crise deve-se às opções políticas?
Também. Nem toda a gente tem de ler Platão e de traduzir latim. Mas está à vista que a hipervalorização, às vezes até um bocadinho provinciana, das tecnologias traz consigo lacunas consideráveis na forma de olharmos para o outro, de pensarmos no que é justo ou injusto, no que é solidário e não o é, no que é bonito e no que é feio - e que encontramos na Literatura, na História, na Filosofia...  A recuperação do atraso científico e tecnológico não deve ser feita à custa da desqualificação - política, até - de outras componentes da nossa cultura.
 
A distribuição de computadores, dos Magalhães, pelas crianças não faz passar a mensagem inversa?
 
Faz. É um esforço muito interessante, mas que se arrisca a pôr em causa outros tipos de saberes. Quero acreditar no argumento de alguns - o de que o Magalhães permite o primeiro acesso à leitura por parte de muitos miúdos que não têm livros em casa. Mas, ainda assim, não deixa de ser necessário contrabalançar esta hipervalorização do computador com outras medidas. Com o investimento no Plano Nacional de Leitura, a criação de bibliotecas...
O contributo dos programas de Português para a transformação da relação com a língua que pensa ser necessária acaba por ser escasso...
O programa provoca uma transformação, isso é claro. Combate a cultura do facilitismo e contraria o erro; procura valorizar a sistematização da língua, incentivar a leitura de bons textos... Mas, sim, que não haja a ilusão de que novos programas, sejam do que for, resolvem, só por si, os problemas. A situação exige muito mais.
 

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